"Grace! Onde está Aidyn? Não quero lutar com você, mas estou disposta se não me disser!"
Skye e Grace estavam à margem do acampamento do Ninho do Corvo. O lugar tinha um aspecto decrépito, como se um caprichoso espírito de vento tivesse recolhido destroços do litoral e despejado ao lado da montanha. Mas ali ela se sentia acolhida, e mais do que mera cliente dos Corvos Prateados, o grupo de mercenários liderados por Grace O'Malley e o Guarda Espiritual.
Ela se voltou para o vale logo abaixo, e mordeu a bochecha com força. O tempo era curto. Ela nem queria imaginar Aidyn à mercê dos Varangianos. Cada segundo que transcorria era tempo demais. Mas mesmo assim.
Mas mesmo assim você está aí, ameaçando alguém a quem chama de amiga.
A insígnia styrkr amaldiçoada que o Sem Rosto gravou nas suas costas não minou somente sua força física. Até seus próprios pensamentos se voltaram contra ela, enchendo-a de ressentimento e insegurança.
Você sempre foi fraca. Não é a maldição. São as suas emoções. São elas que deixam você fraca.
Foi ficando mais difícil separar os pensamentos que eram dela mesma, os que eram causados pela maldição e os que eram resquícios da crueldade de seu pai. E era impossível saber em quais deles ela podia confiar.
Skye cerrou os dentes de frustração. "Só vou perguntar uma vez, Grace. Onde está a Aidyn?"
Grace titubeou, o que era incomum para ela, para dizer o mínimo.
Ela está elaborando as mentiras que você quer ouvir.
"Cale-se!"
Pela reação de Grace, Skye percebeu que havia gritado.
A preocupação suavizou o semblante da líder dos Corvos. "Está piorando, não é, Skye? A droga de maldição Varangiana."
Ela está com um olhar condescendente.
"Não preciso dessa sua piedade ridícula, Grace!" Skye chiava. O legado de desconfiança deixado por seu pai e a maldição se assomavam sobre ela. Esfregou o braço, embora não estivesse coçando.
Grace abriu as mãos. "Skye. Olhe, que tal respirar fundo e se acalmar?"
"Você quer que eu fique calma? Você ficaria calma se os Varangianos capturassem o seu amor?" Skye fingiu uma súbita compreensão. "Ah. Mas quem seria idiota de amar você?
Durou só um instante, mas Skye sentiu. Dor. Uma pequena e infame porção de Skye sentiu o gosto de sangue e sorriu.
Grace não conseguiu disfarçar o fogo de seu olhar. "Tudo bem. Sei que não foi sua intenção."
O vazio maligno que havia suplantado a confiança de Skye queria mais. Ela foi mais fundo, buscando a fraqueza de Grace, sua garganta macia. "Só falei em voz alta o que todo o mundo sabe." Ela apontou para o acampamento. "Inclusive os seus amigos mercenários sabem. Que, no fim das contas, Grace O’Malley só se importa com uma pessoa. Consigo mesma."
O sorriso despencou do rosto de Grace.
Skye deu uma risada maliciosa. Sim. Isso mesmo. Mostre seu verdadeiro eu. Mostre que é tão mesquinha quanto eu.
"Você é minha cliente e amiga", disse Grace. "Mas acho melhor parar agora com isso que está fazendo."
“‘Acho melhor parar agora',"zombou Skye. "Escutem só a senhora bem-nascida da Baía Punho de Vela baixando seu nobre decreto!"
Grace soltou um suspiro exasperado.
Skye enrubesceu de raiva. "Incomodo, Grace?"
"Para dizer a verdade, me incomoda que esta maldição a leve a dizer e fazer coisas de que vai se arrepender mais tarde", retrucou Grace.
"Isso me cheira a ameaça. É esse o caso? Você é tão idiota a ponto de insultar e ameaçar uma Filha-lança?" Skye buscou a lança e cravou a haste na terra compactada. Mesmo esse pequeno movimento a deixou fraca e ofegante. E com mais raiva do que nunca.
Alguém tossiu alto. Skye ergueu o olhar até o Corvo Prateado Zander, "O Imortal". Do tamanho de um carvalho, ele adentrou a clareira sem camisa e com o martelo pendurado no ombro esquerdo. Quem abria caminho era um filhote de lince, a quem os Corvos Prateados haviam inexplicavelmente dado o nome de Cão. Ela observou o gatinho saltar para dentro de uma vala onde já esteve alguns minutos antes. Será que ele foi buscar Zander para apartar a briga?
Skye franziu a testa, e uma forte sensação de paranoia a fez recuar para fora do campo de ataque de Zander. Mesmo com tantas cicatrizes, Zander "O Imortal" devia este apelido ao fato de nunca ter sido morto em Aeternum. Era fácil perceber por quê - aquele homem era uma montanha de músculos.
Zander falou em voz alta e com forte sotaque grego. "Olhem, amigas. Ouvi tudo dali de trás." Com o braço musculoso, apontou para depois da fogueira.
Grace acenou com os braços como para tocar um urso de volta para a caverna. "Não é uma boa hora, Zander."
"Claro! Eu entendo", disse o mercenário.
"Que bom", retrucou Grace.
Zander deu alguns passos na direção de Skye.
"Zander!"
O aviso de Grace foi em vão. Sua postura usual, a de um minotauro levemente confuso, havia sumido. Ele tinha o semblante ligeiramente tenso e fitava resolutamente os olhos de Skye. Era como se pudesse ver o rosnado aprendido de ódio e medo no íntimo dela.
Skye não gostou daquilo. Ela não queria ser vista.
De canto de olho, avistou Grace se aproximando deles.
"Para trás, Grace." , bradou Skye em um rugido baixo enquanto se agachava em posição de luta.
"O que… Skye, Zander, o que estão fazendo?", inquiriu Grace.
Sem tirar os olhos de Skye, Zander retrucou: "Fique aí, Grace. Você sabe muita coisa que eu não sei, mas eu conheço o coração de um guerreiro. E eu sei do que esta Filha-lança precisa."
"E o que seria?", perguntou Skye, o coração pulsando nos ouvidos.
"Sentir com isto." Zander apontou para a cabeça. "E pensar com isto." Desta vez, apontou para o coração.
A postura de Zander não mudou, mas ela podia sentir a tensão circulando.
Uma rajada de vento soprou e lançou uma folha flutuando preguiçosa entre os dois guerreiros.
Algo aconteceu com Skye assim que a folha caiu.
Pela primeira vez depois de meses, ela viu tudo com clareza, sem o véu sombrio da maldição a lhe nublar a visão.
As orelhas de Cão se aplainando, suas garras lascando o caixote abaixo dele.
A mão direita de Grace escorregando para o bacamarte.
O pulso de Zander apertando o cabo de sua marreta.
A folha tocou o chão.
A marreta de Zander deslizou para baixo na diagonal, como Skye havia esperado. Ela se abaixou para sair dessa trajetória e varreu o ar com a lança para atingir as pernas de Zander, mas já não tinha mais forças! E o golpe se desviou.
Skye puxou a ponta da lança para trás, mudando de posição para atacar o flanco exposto de Zander.
Mas Zander havia girado para encará-la, aproveitando o impulso de seu golpe inicial para continuar erguendo a marreta até onde ela agora estava. Skye girou para desviar, mas, como já estava em movimento, foi atingida parcialmente no ombro.
Ela grunhiu de dor e viu estrelas.
Ao recompor a visão, percebeu Zander vindo em sua direção em um golpe com as duas mãos por cima da cabeça.
Ela avançou e deslizou por entre as pernas dele, ignorando a dor da pedras que rasgavam sua pele.
Zander e Skye circulavam um diante do outro, buscando uma abertura.
E então veio.
Skye e Zander se atacaram, cada um com seu brado de guerra.
Ela avançou sobre ele, e ele revidou
CLANG!
Seus golpes se encontraram em uma chuva de faíscas.
A lança de Skye vibrou contra a força da marretada de Zander, ameaçando quebrar os braços da garota. Mas ela não baixou a arma.
E então, sentiu. Uma lágrima escorrendo de seu rosto. Lágrima de alegria.
Zander trazia um sorriso louco no rosto.
Skye riu, e Zander a acompanhou, efusivo. Baixaram as armas.
Zander estendeu o braço e Skye o segurou pelo antebraço.
Ele se inclinou até ela e disse: "Você continua sendo uma guerreira. Não se esqueça disso."
Grace sacudiu a cabeça e deu um leve assobio. "Não faço a mínima ideia do que aconteceu aqui. Mas e aí, vocês estão bem?"
Skye olhou para Zander: "Sim, graças a este cara aqui."
Zander assentiu, depois farejou o ar e entrou em pânico. "Ah! Meus bolos de limão estão queimando!" Enquanto corria até a fogueira, resmungou: "Se pelo menos eu tivesse uma cozinha de verdade em vez deste buraco!"
Skye o observou partir, então guardou a lança nas costas e se voltou para Grace. "Você tinha razão. Já me arrependi da forma como agi com você. Desculpe."
Grace acenou displicente, mas Skye insistiu.
"Eu estava com medo. Estou com medo. De morrer. Nunca tive medo de morrer. E sinto vergonha de quem sou e do que sou agora. O que sou eu, Grace?"
Grace deu uma gargalhada, e desta vez Skye sentiu afeição. "Humana, eu acho. Também errei ao tentar proteger e julgar você. Sei que precisa ir atrás de Aidyn, e não deveria ter impedido."
Skye assentiu com a cabeça.
"E também", prosseguiu Grace, "quero que saiba. Você é uma pessoa amiga, Skye. Eu me importo com você."
Skye sentiu lágrimas tórridas descerem pelo rosto enquanto abraçava Grace. Ela tinha cheiro de couro e de mar.
"E eu com você", disse Skye.
"Para dizer a verdade, não vai ser nada fácil resgatar Aidyn", completou. "Não consigo lutar deste jeito." Skye olhou para as mãos como se ali fosse achar uma resposta.
Grace sacudiu a cabeça. "Tenho até medo de pensar no monstro que você vai ser quando dermos um jeito nessa maldição. Mas você não vai lutar sozinha. É isso mesmo, eu vou com você. Uma senhora apoia a outra, não é?"
"Não sei de qual outra senhora você está falando", retrucou com um sorriso malicioso.
Grace sorriu de volta. "Que bom que voltou, Skye. Agora vamos ver esse mapa."
Skye sorriu. Por enquanto ela aproveitaria a sensação de paz que os Corvos Prateados lhe emprestavam enquanto pungia a escuridão que retorcia o seu coração. Por ora, decidiu se permitir ter esperança.